quarta-feira, 29 de junho de 2011

LAICIDADE, TOLERÂNCIA E DIFERENÇA


As recentes manifestações de cunho religioso contra a decisão do STF que reconheceu o direito à união estável por parte dos gays e as respostas à criminalização da homofobia por parte da banda fascista do Parlamento são preocupantes. Mas já vou adiantando: não compartilho da visão de que a “laicidade” do Estado está sendo atacada por religiosos, tampouco que a criminalização da homofobia seja algo positivo. Não porque concorde com homofobia ou com as causas evangélicas, por óbvio. Quem lê o blog já deve ter percebido que penso de forma diametralmente oposta a tais grupos. No entanto, é preciso pôr algumas vírgulas nessas questões, pois são mais complexas que parecem.

Que papel desempenha o princípio da laicidade no mundo atual? No lugar onde é mais fortemente invocado, a França, é utilizado pelos “republicanos” contra minorias islâmicas a fim de preservar a “neutralidade religiosa dos espaços públicos”. Sabemos, contudo, que privar uma pessoa da possibilidade de ostentar um símbolo religioso não é neutro, mas uma atividade repressiva que envolve a tomada de uma posição cultural (no sentido forte, de ética, pertencimento a uma morada, ethos). Além disso, conhecemos a hipocrisia de tais proibições: fundadas na emancipação feminina (causa totalmente respeitável e urgente), elas não terão a mesma eficácia em proibir discursos católicos em relação à castidade das mulheres e ostentação de crucifixos. Em suma, a laicidade é hoje usada na França como máscara jurídico-política da xenofobia crescente no país. O que os franceses chamam de “laicidade” ou “republicanismo” não é outra coisa, observadas certas particularidades, senão a alergia ao estrangeiro.

Pode-se alegar, nesse sentido, que há casos mais simples: por exemplo, na questão da retirada dos crucifixos em salas de audiências (que, por sinal, foi rejeitada pelos magistrados brasileiros). É verdade. Nesse caso, teríamos uma estrutura de tribunal “neutra” da qual é possível desafogar os símbolos religiosos (obviamente, a objeção dos católicos é ridícula: comparar o Cristo Redentor, símbolo religioso-cultural em um espaço público, com um crucifixo em um espaço estatal é deixar de lado o bom senso). Porém imaginemos a seguinte situação: um aborígene neozelandês, guiado por práticas restaurativas que hoje influenciam as melhores correntes de pensamento criminológico, cai em uma sala de audiências. Será o espaço de um juiz acima das partes, vocabulário exótico e estrutura “trinária” algo realmente neutro para ele?

Podemos confirmar essas observações por meio da riqueza de estudos em filosofia política, antropologia e outras áreas acerca da secularização como processo de incorporação de conceitos teológicos à esfera profana. A obra Homo Sacer (enquanto sequência de trabalhos) do filósofo Giorgio Agamben é, nesse sentido, o maior exemplo, embora não seja o único nem o primeiro. Na realidade, a laicidade é, como ensina o português Fernando Catroga, o passo em que a secularização se converte em religião civil, paradoxo que põe em xeque as convicções liberal-modernas de que é possível eliminar esse tipo de problema mediante abstrações, sem uma direta conexão (profanatória, antropofágica, desconstrutiva, reacionária etc.) com a tradição.

Os liberais – e vivemos sob a égide do paradigma liberal na política – pensam na questão exclusivamente em termos de tolerância. A fórmula é de que as religiões diversas devem ser toleradas na esfera pública e relegadas à liberdade da esfera privada. A aposta no “laicismo” dos movimentos gay e feminista, por exemplo, no fundo reflete isso: a crença de que, gostem ou não de mim os fundamentalistas religiosos, é ainda possível em um Estado Liberal que este não interfira na esfera privada, deixando a liberdade de cada um intacta mediante a tolerância recíproca. É a perfeita imagem monádica do mundo, em que esferas atômicas cerradas em si mesmas mantêm a plena indiferença uma a outra, coincidindo a liberdade com a propriedade e resultando na crise ético-política que vivemos atualmente.

Acredito que devemos ir adiante e girar o foco menos para o “laicismo” (que pode ser útil em certos casos, e não se mostra ideia desprezível) e mais para a própria possibilidade de construção de discursos que ajam no interior das formas-de-vida, rompendo a crosta monádica do indivíduo-livre-e-tolerante moderno. É preciso perceber que o que vivemos atualmente é, sobretudo, um choque com a experiência positiva da política. Em outros termos: as posições conciliadoras que relegam a altos graus de abstração os problemas, a fim de fugir dos conflitos vitais, acabam por tornar tudo tão formal e abstrato que se transformam, por isso mesmo, em teorias desconectadas da realidade. Precisamos enfrentar essa experiência ético-política do entrechoque das formas-de-vida.

É necessário interromper a “tolerância” com o fascismo, não com violência contra os fascistas (daí minha crítica à utilização das vias penais), mas justamente exibindo a respectiva violência. Devemos mostrar que quem dá o soco e tem seu braço interrompido no meio do caminho não está sendo agredido por quem se defende. De outra forma: precisamos exibir o sofrimento daqueles que vivenciam a violência cotidiana opaca e muitas vezes alicerçada em tradições. Não que isso seja uma estratégia passiva; é uma estratégia pacífica. Os próprios cristãos – seguidores de uma sabedoria milenar – devem reagir contra a interpretação fanática e equivocada das Escrituras. Pois qualquer um que tenha estudado a história de Jesus de Nazaré – e para isso basta ter passado pelo colégio – sabe que sempre foi ao Outro, e não as moralistas, que ele se dirigiu. Não podemos nos conformar com a mera “tolerância”; devemos convencer as pessoas – por meio da concretude da violência que exercem – que elas precisam interromper esse processo, que elas precisam ser com a diferença. É preciso mostrar que é errado ser preconceituoso, violento, discriminatório com gays ou quem quer que seja (experiência sempre dolorosa de ruptura com nossos saberes prévios, com nossa segurança do ser, com nossa autoconservação). Essa experiência da política material – bem distinta dos moldes jurídicos da política liberal – é fundamental e precisa ser recuperada. Não devemos nos acovardar diante da magnitude da tarefa.


Sobre Moyses Pinto Neto
Pesquisador transdisciplinar da violência. Doutorando em Filosofia (PUCRS). Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Criminologia e Direito Penal da ULBRA.

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